Tempo, tempo, tempo, tempo
ou
Saturno: guardião do que É
“(…) Peço-te o prazer legítimo / E o movimento preciso / Tempo, tempo, tempo, tempo / Quando o tempo for propício / Tempo, tempo, tempo, tempo / De modo que o meu espírito / Ganhe um brilho definido (…)”
Oração ao Tempo, Caetano Veloso.
Saturno na mitologia grega é Cronos, aquele que come os próprios filhos e rege o passar do tempo cronológico. Na Astrologia, Saturno não diz respeito a um tempo abstrato, à retícula do calendário ou ao número do ano em que estamos. Saturno é o tempo se dando na concretude das coisas do mundo, é o tempo inscrito na matéria. A despeito do que dizem deste planeta, ele é extremamente afirmativo e positivo; realidade que se faz realidade a todo momento, o próprio “é” das coisas, a imanência latente.
Como conciliar a ideia de que Saturno é afirmativo e positivo se ele tradicionalmente está ligado ao negativo, ao vazio, à frustração, à inibição e ao constrangimento de ser? Saturno não opera na subtração? Não é ele que diz “menos”? Não é ele que diz “não”? Não é esse planeta que dá o limite, a restrição de todas as coisas?
Jus-ta-men-te.
Cada “sim” de Saturno abre fossos de “não”: frustração. Lidar com o que “é”, com a materialidade e limite das coisas traz em si o atrito e o desgaste. O átomo, que constitui a matéria, é mais vazio do que cheio. Encostar no que é palpável já é lidar com a falta. Há algo nas coisas que, estando, não está lá.
Saturno nos traz a desconfortável notícia de que o mundo não se fez mundo no momento em que nascemos. Ele nos conta que nosso ser se constitui pelo entrelaçamento e desdobramento do tempo-matéria. Meu corpo, meus traços, minha aparência, minhas opiniões, (meus desejos?!), carregam histórias da família em que nasci, da sociedade em que vivo, do momento histórico a qual pertenço. Saturno nos obriga a lidar com a estrutura do mundo, com a organização social, com o passado que consitui o presente, com o que está definido à priori.
Tudo o que é sensível ao toque, que tem contorno e estrutura, pertence ao seu domínio. Talvez essa qualidade tátil/corpórea de Saturno seja um dos motivos para a metafísica ocidental cristã tê-lo condenado ao status de planeta maléfico. Nesse sistema de pensamento, o espírito, elevado, está preso ao corpo, pecador. Só é possível encontrar salvação fora da matéria, em um paraíso de luz. A carne e o mundo material nos condenam ao sofrimento, à dor, à limitação. Punição.
Toda vez que achamos que a mente e o espírito são superiores ao corpo e ao cotidiano estamos reproduzindo essa lógica. Talvez para outros povos, outras culturas, o que entendemos como pertencente à dimensão de Saturno não doa tanto, não machuque tanto assim. Para os zen budistas, por exemplo, não há salvação fora do corpo, o sofrimento está justamente na separação da mente-corpo. A respiração e a postura corporal nos trazem presença e essa presença é o que permite a iluminação. No zen budismo, as coisas simplesmente são, não há respostas transcendentes ou sobrenaturais. Não se busca o que está além e sim viver com presença o aqui-agora.
Saturno pode doer muito quando rejeitamos o aqui-agora. Ele nos obriga a enfrentar a realidade crua e maciça, sem fugas. Ele nos conta que o mundo está aí e precisamos lidar com ele. No entanto, o discurso midiático contemporâneo prega justamente o contrário. Nos diz que basta ter força de vontade individual para que as coisas se realizem e repete frases do tipo “sua vida está nas suas mãos, basta querer”.
Saturno não aceita esse tipo de prepotência. Ele nos obriga a reconhecer que as coisas têm o seu próprio tempo, a perceber que a maturação faz parte dos processos vitais.
Processo
Saturno não é necessariamente dolorido, o reconhecimento do que ele representa pode ser vivido como uma benção para pessoas que enfrentam dificuldade para se constituir no mundo. Ele pode ser uma grande mão da vida que encosta na pele e mostra que temos contorno, que somos reais e que podemos fazer alguma coisa com os recursos de que dispomos.
Saturno impõe os limites e são esses limites que nos dão contorno, presença, reconhecimento da pele, do que nos separa do resto. Saturno é o barco que recebemos para fazer a travessia da vida, é a estrutura que garante que a gente não se afogue na imensidão. Mostra o peso das coisas ao mesmo tempo em que revela que o chão é o limite. Podemos cair, mas a terra nos sustenta.
Aliás, “sustentação” é uma palavra que tem muito a ver com Saturno, pois é o Saturno que existe em nós que pode sustentar o peso do nosso corpo. Só podemos andar porque o chão oferece resistência aos nossos pés. É Saturno que nos lapida internamente e garante os recursos para sobrevivermos neste mundo. Ele nos diz que é preciso trabalhar, inclusive para garantir os recursos materiais: dinheiro, casa, alimento…
O temido retorno de Saturno, quando este planeta volta ao ponto em que estava quando nascemos, nada mais é do que o momento de constatação dessas necessidades. Muitas pessoas chegam aos 28/29 anos, no primeiro retorno de Saturno, sem lidar muito bem com as dimensões saturninas da vida: as limitações, os contornos, a importância da frustração, a necessidade de trabalhar para conseguir com tempo e esforço o que realmente desejam… Elas podem sentir o retorno de Saturno como uma pancada, como se a vida as obrigasse a olhar para o que elas evitaram ao longo da juventude. Saturno nos diz: “o tempo passa, o que você está fazendo do seu tempo?”.
Entretanto, o retorno de Saturno também pode ser vivido como o momento de constatação da própria trajetória, de concretização de projetos, de perceber a própria constituição interna, a colheita após uma longa lavoura. Da mesma forma, o segundo retorno de Saturno, em torno dos 56 anos, pode ser vivido tanto como um momento de realização quanto de reconhecimento da passagem do tempo, do começo da velhice.
Pensar que existe uma data pré-estabelecida na qual todas as pessoas vão passar por um “grande evento cósmico” ou levar uma rasteira da vida, é reduzir muito o que esses processos representam e a forma como cada um lida com eles. Se compreendermos Saturno dentro de seu paradoxo podemos reconhecer que ele é tanto a fria rocha quanto o diamante brilhante.
Saturno muitas vezes mascara o que há de mais precioso, para preservá-lo de uma exposição prematura. Só o tempo, o atrito do tempo e o limite das coisas do mundo permitem desgastar a casca dura que se apresenta no começo, lapidar a pedra bruta. Todos os contatos com Saturno envolvem lapidação, engaste, entalhamento; trabalho fino e concentrado para se chegar ao núcleo.
Esse planeta é o guardião da nossa integridade, da nossa verdade interna porque ele põe nossa expressão singular à prova. Depois de tanto tempo de lapidação, de desgaste com a dureza, é possível conquistar este lugar de constituição interna. Podemos nos expressar dentro do que é propriamente nosso. Depois de um longo caminho, quem sabe possamos olhar para nossa trajetória e reconhecer o lugar em que estamos.
A preciosidade que Saturno oferece após esse desgaste do tempo é a conquista da autoridade interna. O trajeto autoriza o saber sobre nós mesmos. Podemos receber a permissão interna de afirmar a própria verdade sem pedir autorização dos outros. De mãos dadas com Saturno podemos dizer que o tempo passou e que a gente re-conhece o próprio percurso. A partir daí Saturno pode deixar de ser inimigo para se tornar o mestre-tempo que é.
Na mitologia, Saturno-Cronos come os próprios filhos. Ele é tanto criador quanto devorador. Por isso ele está ligado com o reconhecimento da passagem do tempo, da nossa finitude, da velhice e da morte. A Morte, no entanto, é apenas a face oculta da Vida. É o vazio invisível de onde todas as coisas podem surgir. Se o corpo-mente é um só, a Vida-Morte também.
Depois desse longo processo com Saturno, se fizermos as pazes com sua dimensão paradoxal, talvez poderemos receber o pagamento deste árduo trabalho que ele impõe. Reconhecer nossa finitude, os limites impostos pelo tempo, pode ser a chave para deixar de temer a Morte-Vida. Afinal, esse desgaste da matéria é o que permite a roda do tempo girar.
Quem sabe assim os processos pessoais deixem de se apresentar com tanta dureza. A experiência individual possa deixar de ser um fardo e se revelar como caminho/percurso que dá sentido para nossa existência. Então, o mestre Tempo talvez nos ajude a expressar com maestria o nosso “idioma pessoal”, a nossa contribuição para esta vida-passagem. Como diz o poeta, “de modo que o meu espírito ganhe um brilho definido”.
– Julia Francisca
[ Para conhecer mais Saturno, ler “Saturno” de Liz Greene.]