Carta para Camila
Percebi que das nossas conversas muitas vezes saíam textos. Por isso, quando travei, resolvi escrever no diário como se estivesse falando com você. Para ver se isso ajudava a liberar minha escrita. Essa foi uma das primeiras experiências.
7 de março de 2023, Guarujá, madrugada de lua cheia
Antes a escrita era uma conversa comigo, uma conversa com os cadernos, diários, meus amigos, meus parceiros. A escrita me escrevia e depois eu lia para saber o que ela tinha me dito, o que ela tinha me escrito, inscrito. Uma conversa franca, sem mediação, sem edição, um espaço que me acolhia… Entrava num fluxo e ía… Era uma conversa também com seres que me acompanhavam, os espíritos, as paisagens, as sonoridades, as imagens, estados em que entrava, estados que me tomavam…
Eu tinha liberdade até de escrever poemas pretensiosos, investida do espírito de um grande poeta e dar risada depois e gostar mais de uma anotação corriqueira do que uma “poesia do século”, vazia. Meu diário era minha grande amizade, minha maior aliança. Uma companhia que me acompanhava em todos os lugares. Se aparecesse um espírito, uma assombração, um assombro, se abrisse uma fenda na realidade, no meio do dia, no meio das pessoas, no meio do meu corpo, se eu entrasse em estado de maravilha, se eu flutuasse ou afundasse na terra, se eu ouvisse vozes, se o vento, a pedra, a árvore ou a nuvem falasse comigo, se a vida de repente ficasse cinematográfica e um terror, um romance ou uma fantasia fantástica se instalasse, se encrustasse na matéria do dia, se eu quisesse matar alguém e fosse consumida pelo ódio, se eu transbordasse de apaixonamento ou esperança, se o choro me espancasse ou se o singelo, a delicadeza me comovesse, se as palavras começassem a girar dentro de mim, se as palavras me convocassem, se as palavras se impusessem, se elas começassem a girar numa velocidade insuportável, se eu não conseguisse ouvir nada além das palavras do além, se eu dissolvesse ou perdesse a pele, se eu fosse assolada pela presença destruidora do cosmos, se eu fosse tocada pela beleza, se eu não conseguisse dormir e sentisse saudade do Sol, das cores do dia, se a presença das sombras do meu quarto ficassem muito densas, se eu começasse a vagar e ser levada mesmo parada… Eu podia me segurar na escrita, se estivesse com meu caderno, um pedaço de papel, um lápis… estaria segura.
Eu podia conjurar feitiços, maldições, bênçãos e produzir todo tipo de alquimia, antídotos, bálsamos. Eu podia mergulhar em veneno sem me envenenar. Podia jorrar sangue e voltar à vida. Podia vagar como espectro, cadáver, morta-viva, habitar limbos, eternidades de dor e ainda assim ter um fio; o fio do traço, o fio do risco, o fio do desenho, o fio da palavra. Meu espaço sagrado. Onde poucos podiam acessar e mesmo assim nunca acessar o momento do jorro, nunca tocar na fonte, nunca acessar a nascente, jamais tocar no ato da escrita, jamais tocar no escrever, apenas no escrito. A escrita só poderia ser olhada de relance, pelo canto do olho ou com a vista desfocada. Jamais encarada de frente jamais poderia ser vista fixamente, nem deixar escritas inimigas invadirem o texto-templo.
Hoje eu sinto poluição na nascente, como se mineradoras tivessem se instalado no território da escrita. E eu fui destituída do diário embaixo do braço. Ali na fonte, no brotar das águas e de todos os elementos, ali mesmo se instalou uma extração do que era precioso. O jorro deu lugar ao constrangimento, o silêncio – que falava comigo sem dizer nada – deu lugar ao corpo calado. Palavras que titubeiam não porque dançam, titubeiam por não reconhecer o solo sagrado, o corpo fértil. Parei de escrever comigo para escrever pros outros, perdi o diário, o caderno para escrever no computador, na rede social, deixei de falar comigo para falar com um monte de gente humana e com ninguém. Pulei as etapas, suprimi o ritual, abri mão do espaço sagrado do escrever. A escrita virou escrito, as palavras não vinham do jorro, não desdobravam da nascente… Até que secou, o Instagram me secou, as legendas secaram meus mapas, os textos diziam o que diziam, apenas. Não diziam do jorro, nem das outras conversas. Faziam menção aos outros mundos sem tocá-los, sem habitá-los. As vozes não estavam ali, as vozes se calaram, distanciaram.
Oferendas sem alimento. As palavras ofertadas estavam secas e cheias de olhos, milhares de olhos, como luz branca de hospital ou frigorífico, depositavam os olhares desvelando e apagando ao mesmo tempo. Muita luz que apagava e perdia o invisível, o translúcido, o lusco-fusco. A escrita precisa da luminosidade do alvorecer ou da centelha de estrela da madrugada. Escrevo agora ouvindo grilos e o ar condicionado da vizinha. E sinto a presença lenta do Sol, que aos poucos se aproxima. Quando escrevo, a madrugada é minha amiga e os sonhos não sonhados me fazem presença sem imagem ou história. O corpo quebrado na plenitude de um desconforto. Um pássaro desconhecido e querido anuncia uma mudança de tonalidade, avisa o fechamento lento dos portões da noite. Quando espio, as cores já começaram a se festejar e o espírito-medicina da bruma acaricia ar, pétala, nuvem, folha, terra, raio de luz.
E nesses momentos as palavras muitas vezes já pararam de girar, mas continuo com a caneta na mão e o caderno no colo, amuletos de passagem, objetos mágicos de travessia. Um gavião pia, sinto cheiro do cocô da Filó na caixinha de areia e ela mia pedindo pra sair. Mas não posso levantar ainda, cuidar das banalidades, antes que a escrita me permita encerrar o tempo dela. Tenho que sustentar um tempo, guardar a porta do templo, preservar o silêncio que brinda o jorro, a presença magnífica de outra velocidade que pode dizer Nada, mesmo que continue escrevendo.
A nova tonalidade já toca a entrada do meu quarto. O amanhecer é o pouso da escrita. Desaguar das palavras, o fio encontra o vazio do papel_______________________________
Já posso descansar?
Mas antes, saudar a travessia, a noite, o dia, a última estrela que se encaminha para trás do monte. Minha oração maldita bendita vai chegando ao fim. Antes de ir, quase sempre, a escrita me pede para ler o que me escreveu.
É o costume nessas terras para encerrar o ritual.
– julia francisca