cruel busca da “melhor versão de si”

cruel busca da “melhor versão de si”

Existe uma visão de que fazer terapia serve para a gente se tornar “a melhor versão de si”. Como se um processo terapêutico pudesse extirpar tristezas, angústias, sintomas, vícios… Quase como se fôssemos um sistema operacional que pode ser atualizado e aperfeiçoado para uma versão 2.0 sem bugs. “Você está mal? Vai fazer terapia pra resolver!”

Ninguém quer viver em sofrimento, nada mais justo do que tentar melhorar. Mas essa ideia de ser “a melhor versão de si” pode carregar um ideal cruel.

É possível um corpo, um indivíduo, não sentir os impactos da violência urbana, da precarização da vida, do transporte público, das relações de assédio no trabalho? É possível um corpo-mente não sentir o impacto do lixo, veneno, poluição ao redor? É possível um corpo não sentir as notícias de morte? O extermínio de populações… no próprio bairro, no bairro ao lado, em outro país? 

É possível o indivíduo resolver “dentro de si” algo que, na verdade, são efeitos do encontro com o mundo? É como pedir para alguém que está tomando veneno não se afetar por isso… 

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Não é de hoje que as terapias e a área psi (psicologia, psicanálise, psiquiatria…) vêm servindo para “tratar” o sofrimento como algo individual, fora de contexto e das relações que as pessoas estabelecem com o mundo. Cada vez mais as pessoas estão sendo “tratadas”, diagnosticadas, medicadas. E também responsabilizadas individualmente pelas questões coletivas, políticas, sociais, ambientais e econômicas. Isso coloca as pessoas numa busca por um ideal inalcançável de “saúde mental” e “bem estar”. Ironia cruel: essa busca é bastante adoecedora.

Quantas vezes a gente se maltrata por ter um defeito, quando foi justamente esse defeito que permitiu a nossa sobrevivência diante de uma tragédia? Ouvi recentemente uma neurocientista dizer que nossos sintomas e traumas não nos tornam pessoas “quebradas” ou “defeituosas”. Nossos sintomas são um mecanismo de defesa do nosso sistema nervoso. Eles expressam a potência que o nosso corpo tem de cuidar de si e lidar com situações fortes demais.

Nesse sentido, será que não deveríamos ter mais amizade com os nossos defeitos e vícios? Quem sabe até agradecer por eles terem permitido que chegássemos até aqui? “Ser a melhor versão de si”? Melhor pra quem? 

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Essa frase da Clarice é um remédio que costumo receitar para algumas pessoas que atendo. Penso que terapia e análise, muitas vezes, é muito mais sobre acolher os “defeitos” do que eliminá-los. Afinal, nossos “defeitos” foram o modo como nosso corpo-mente conseguiu passar por uma situação inóspita. Eles são a prova da nossa potência e força para sobreviver. Algumas dores vão embora, outras a gente aprende a cuidar e conviver. 

Que as terapias e análises sirvam para a gente reconhecer o que nos envenena e o que produz vitalidade. Que a partir disso a gente possa produzir saúde como exercício de autonomia e fazer melhores escolhas para si, melhores encontros com o mundo. E, do ponto em que se está, produzir melhores condições de vida para si e seus arredores.

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Escrevo esse texto pra que ele chegue em alguém, mas também para que eu mesma possa ler. Há semanas sinto uma profunda tristeza e desolação com o massacre que está acontecendo na baixada santista. 

Vi sem querer e sem aviso um vídeo explícito da violência policial. A Faixa de Gaza está ao meu lado. Há pouca denúncia, quase nenhuma mobilização em uma cidade que na sua maioria votou na extrema direita e é conivente com o extermínio da população pobre e negra. 

As imagens não saem da minha mente, não consegui ir para o Carnaval em Santos com medo da presença policial ostensiva. Muitas vezes eu fico prostrada com a angústia e impotência, mas hoje, hoje escrevi um texto.

Julia Francisca, março, 2024

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